sábado, novembro 24, 2007

Privatização

De um texto de Vitorino Magalhães Godinho, "O respeito pela pluralidade" (Jornal de Letras, Artes e Ideias, 968), e pensando nas propostas de privatização da gestão das áreas protegidas (v. tb. entrevista do presidente do ICN):


"Dentro da mundialização - inevitável - temos de abrir diferentes caminhos, mas em que os cidadãos segurem no leme e não sejam esmagados pelas redes dos mamutes. Em que o público não desapareça engolido pelo privado, com o pretexto da nunca provada maior rentabilidade dos interesses sobre o bem comum.
[...] Para tal, dada a desconstrução sistemática a que tem sido submetido o Estado, impõe-se reconstruí-lo em novos moldes, como complexo coordenado de sistemas organizacionais que assegurem o equipamento social de base e um conjunto de serviços públicos essenciais à sociedade e, logo, às pessoas. Os insistentes apelos a uma imaginária sociedade civil ocultam que o desaparecimento da organização pública por incontida privatização forma o leque dos problemas centrais do nosso tempo, juntamento com a violência e a degradação social, o surto do fanatismo e a desistência da democracia."

segunda-feira, novembro 05, 2007

The Unnatural History of the Sea



Nao lia um livro assim desde o "Guns, Germs and Steel", de Jared Diamond. Tem uma visão histórica integrada com a perspectiva ambiental e, sobretudo, estilhaça ideias feitas e preconceitos. O que mais me impressionou nos dois livros foi de facto o dar a ver de ambos: explicações para factos ou acontecimentos de que tinha pouca consciencia e que de repente fazem muito sentido. Gosto de livros que me fazem "clique"!
Falo de "The Unnatural History of the Sea", de Callum Roberts. Um livro deprimente, como o podem ser os livros que examinam abertamente o impacto humano sobre o planeta (ver vídeo). O primeiro mito estilhaçado (e falo do alto da minha ingenuidade de biólogo há 30 anos!) foi o de que, em comparação com a terra, o mar está bem conservado. É daquelas ideias que se vão alimentando, apesar de alarmes esporádicos de que as coisas não vão bem. Pois agora tomei consciência de que as coisas não vão nada bem. O segundo mito é o de que os impactos humanos nos oceanos são recentes: vêm-me à cabeça o Exxon Valdez, Minamata, as redes derivantes, a caça à baleia (esta última até com o consolo de ser uma história que apesar das incertezas, parecer ter acabado bem). Pois não: as histórias tristes começaram há mais de 300 anos!...
Durante 334 páginas Callum Roberts desfia o rosário da hecatombe maritima.
Fiquei a saber como os piratas da Caraíbas se abasteciam de tartarugas, manatins e focas monge até extinguirem estas últimas e deixarem as populações das restantes reduzidas a meros farrapos da rica tapeçaria que estendiam nesses arquipélagos tropicais.
Li que a baleação foi a primeira indústria global, e impressionei-me com a extensão e a intensidade da caça às baleias, desde as operações costeiras dos bascos em tempos medievais, afastando-se da costa à medida que as populações iam sendo reduzidas até que, no dealbar da industrialização, frotas impressionantes de navios fábrica percorreram sistematicamente todos os cantos dos oceanos, extinguindo populações atrás de populações, passando das espécies mais fáceis de capturar (a que ainda hoje chamamos "right whale") para os rorquais, que requeriam barcos rápidos e arpões com ponta explosiva.
Fiquei a saber que a diminuição dos stocks das populações de focas e leões marinhos no hemisfério norte pode estar ligada a uma alteração dos hábitos alimentares das orcas, privadas das suas presas favoritas: as baleias.
No campo destes danos ecológicos colaterais, relembrei a relação entre a caça desenfreada às lontras no Pacífico e o desaparecimento das florestas de laminárias, consumidas pelos ouriços subitamente livres dos seus predadores (uma história que tem mais de 2500 anos...). Aprendi que, sem as laminárias de que se alimentavam, a população de manatins de Steller, que se estendia do Japão à Califórnia, ficou reduzida a uma pequena população na ilha de Bering, a qual os marinheiros da expedição do próprio Steller e os caçadores de lontras que se lhes seguiram conseguiram extinguir em menos de 30 anos.
Recordei os protestos contra os arrastões que ouvi em pequeno ao meu avô e aos meus tios, pescadores artesanais da Ria Formosa, ao aperceber-me do terrível impacto deste tipo de pesca nos fundos de todas as plataformas costeiras e estuários do mundo, das alterações ecológicas que provocam e de como estas podem ser irreversíveis.
Apreendi o conceito das "shifting baselines", a forma como a nossa pouca percepção da abundância do passado nos faz aceitar o estado miserável actual como natural. E vieram-me à memória as palavras de Gaspar Frutuoso, escrevendo no século XVI sobre a abundância de búzios, lapas e caranguejos na costa de Santa Maria: "...é coisa de espanto a multidão deste marisco."
Pelo caminho li uma crítica arrasante à Política Comum de Pescas europeia, pela qual já eu próprio não dava grande coisa...
Depois de 23 capítulos tão deprimentes como verdadeiros, o autor dá-nos finalmente no capítulo 24 a sua visão do que é preciso fazer para restaurar os oceanos a algo próximo da sua primitiva grandeza. São 6 medidas apenas, que se escrevem em outras tantas linhas, mas que correspondem a uma completa re-invenção da gestão das pescas.
  1. Reduzir a capacidade de pesca actual;
  2. Deixar a gestão das pescas ao cuidado de organismos independentes, que se baseiem unicamente em pareceres científicos;
  3. Eliminar o sistema de quotas, substituindo-o por limites ao local, ao tempo e aos métodos de pesca;
  4. Obrigar os pescadores a desembarcar o que pescam;
  5. Usar tecnologia de pesca avançada de forma a reduzir as capturas acessórias;
  6. Banir ou restringir fortemente as artes de pesca mais daninhas.
Os últimos dois capítulos apresentam a segunda ideia forte do livro: a necessidade de constituir reservas integrais que cubram uma área substancial do oceano, entre 20 a 30 % de cada tipo de habitat! Esta é a única forma de garantir espaços em que a natureza possa respirar, e de que os nossos filhos possam voltar a ter visões como as de Gaspar Frutuoso.

Callum está optimista. Eu não.